A REPRESENTAÇÃO DO OLHAR EM DOIS CONTOS CONTEMPORÂNEOS1

Publicado em 24/05/2021 - ISBN: 978-65-5941-199-3

Título do Trabalho
A REPRESENTAÇÃO DO OLHAR EM DOIS CONTOS CONTEMPORÂNEOS1
Autores
  • Liliane Lenz
  • Aroldo José Abreu Pinto
Modalidade
COMUNICAÇÕES - TRABALHOS COMPLETOS
Área temática
Leitura, Literatura e Ensino
Data de Publicação
24/05/2021
País da Publicação
Brasil
Idioma da Publicação
Português
Página do Trabalho
https://meuevento.unemat.br/anais/ivciel/306165-a-representacao-do-olhar-em-dois-contos-contemporaneos1
ISBN
978-65-5941-199-3
Palavras-Chave
função da literatura; representação; leitor; narrativa curta
Resumo
A REPRESENTAÇÃO DO OLHAR EM DOIS CONTOS CONTEMPORÂNEOS1 SANTOS, Liliane Lenz dos2 PINTO, Aroldo Josè Abre3 O presente artigo tem como finalidade observar o modo de representação e o conteúdo representado em “A última crônica”, de Fernando Sabino, e “Olhar”, de Rubem Fonseca, na perspectiva do olhar crítico que nelas se apresenta, o que possibilitaria a humanização do leitor, cumprindo um dos papéis ativos do ato de ler, e permitindo encontrar, por meio dos olhares das personagens desses textos, a concretude sobre a própria existência humana. Considerando que esses olhares descritos estão vivos e latentes dentro de qualquer ser humano. A humanização pela literatura Todo ser humano traz em si uma necessidade de fantasia e ficção, como diz Antonio Candido (1972) e essa necessidade pode ser suprida por meio da literatura porque ela explicita os sentimentos mais intrínsecos do homem. A literatura, por sua vez, cria no homem a fantasia, a capacidade de sonhar, de ter devaneios e isso muitas vezes é apreendido pelo ficcionista de seu cotidiano, do mundo que circunda o indivíduo e, querendo ou não, reflete o momento histórico em que está vivendo. Sendo assim, torna-se próxima, pois o coloca num ambiente já familiar e seguro. Candido (1972, p. 804), num artigo para a revista Ciência e Cultura, adverte que “a fantasia quase nunca é pura” e que ela “se refere constantemente a alguma realidade: fenômeno natural, paisagem, sentimento, fato, desejo de explicação, costumes, problemas humanos, etc.”. Por isso, surgiria em nossa mente sempre a “indagação sobre o vínculo entre a fantasia e a realidade, que pode servir de entrada para pensar na função da literatura”. Tendo em vista essas advertências, passamos a pensar que a função da literatura é libertar o ser humano, fazê-lo ir além do lugar e senso comuns, permitir que se torne um ser mais reflexivo, pensante, dono de suas próprias decisões e, acima de tudo, mais sensível, mais compreensivo, enfim, melhor em suas relações em sociedade. Ainda segundo Candido (2011, p. 175), além da necessidade de ficção e fantasia, a literatura “é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente”. Ao se ter em mente esses aspectos, nos assiste a seguinte questão: quais os recursos engendrados pelo ficcionista para aproximar-se a tal sentimento constituinte de sua imaginação criadora? Nas duas narrativas selecionadas para reflexão, acreditamos que o “olhar” peculiar oferecido pela literatura deixa fissuras profundas e interstícios que necessitam ser preenchidos pelo leitor, sob o risco do texto ficcional não se estabelecer ou se completar enquanto uma estrutura com viés ao estético. O lugar-comum diz que os olhos são a janela da alma, mas seria esse conceito popular verdadeiro dentro do âmbito literário? Segundo Amount (1999, p. 59) “o olhar é que define a intencionalidade da visão. É a dimensão propriamente humana da visão”. De acordo com seus estudos, os olhos são instrumentos da visão e essa resulta de três processos operacionais, que são químicos, nervosos e ópticos, sendo assim, todo processo da visão chega até o ser por meio da luz, que adentra aos olhos e permite a visão, porém os fatores psicológicos é que podem mudar a percepção do que se está enxergando. Segundo Bosi (1988, p. 77), a percepção do outro depende da leitura dos seus fenômenos expressivos dos quais o olhar é o mais prenhe de significações. Tomando a analogia ao mundo físico, o olhar não seria apenas comparável à luz que entra e sai pelas pupilas como sensação e impressão, mas teria também propriedades dinâmicas de energia e calor graças ao seu enraizamento nos afetos e na vontade. O olhar não é apenas agudo, ele é intenso e ardente. O olhar não é só clarividente, é também desejoso, apaixonado (grifos do autor) Ao nascer a criança enxerga ao seu redor, talvez não somente com os olhos, mas também por meio dos sons, dos cheiros, anseios e gestos e com essas impressões passa a conhecer o mundo a seu redor, conseguindo interpretar o lugar onde vive e reconhecer a sua realidade. Os olhos traduzem e escancaram a alma, comandando a essência expressiva. É um sentido primário para a maioria dos seres vivos. Ao entrar em contato com a literatura, consequentemente, é possível perceber com nitidez que essa espontaneidade está, por assim dizer, à serviço ou a mercê de uma visão de mundo do artista que passa a codificar valores, sensações, modos que lhe são peculiares. Logo, observar os olhares possíveis e arquitetados por distintos escritores pode também nos sinalizar ou delinear certas feições da conformação da narrativa curta na contemporaneidade. É, por isso, que tomamos dois textos para processar esses fatos, sendo eles: “A última crônica”, de Fernando Sabino, e “Olhar”, de Rubem Fonseca, ou seja, pautamo-nos no olhar das personagens e nos sentimentos demonstrados por elas no decorrer das narrativas e o fato dessa atitude provocar a catarse no leitor. “A última crônica”, de Fernando Sabino O escritor, jornalista, editor, funcionário público e professor Fernando Sabino ganhou vários prêmios por sua produção. Sobressai em sua obra o cronista sempre atendo aos fatos do cotidiano e ao fazer literário minudente em significados, acepções, símbolos e conceitos que inundam nossos sentidos em busca de ancoragem. “A última crônica” é um belo exemplo desse modo de representação. A narrativa traz a história do narrador que precisava escrever sua última crônica, mas quer escrever algo especial, relatar sobre algo visto ou ouvido digno de ser vivido e escrito. Pensando em adiar a ação da escrita, se detém num botequim para tomar um café. Sentado ao fundo daquele lugar, lança um olhar a todos que estavam por ali e eis que um casal com sua filhinha de aproximadamente três anos acaba de sentar. São pessoas negras e aparentemente simples. O pai chama o garçom e fala algo em seu ouvido, a mãe fica expectante até que o garçom se afasta para atender ao pedido. Todos se mostram alegres, então o garçom se aproxima com uma garrafa de refrigerante e um único pedaço de bolo amarelo. A mãe espeta três velinhas no bolo, o pai acende as velas e juntos cantam parabéns para garotinha, que depois se delicia com seu pedaço de bolo. A mãe ajeita o cabelo da filha e limpa os farelos caídos em sua roupa e o pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito com o acontecido, quando dá com os olhos no narrador os observando. A princípio parece querer desviar o olhar, perturbado, mas logo após encara o narrador e sustenta seu olhar abrindo um belo sorriso. Essa cena aparentemente muito simples guarda em si uma série de aspectos com alusão ao real que remetem a uma nova sucessão de significados. É nesse momento que o texto interpela o leitor a tomar a cena pelo olhar da simplicidade, da bondade e da cumplicidade. Tudo de modo muito natural, notadamente com leveza e exatidão, na concepção que nos apresenta Ítalo Calvino, em Seis propostas para o próximo milênio (1990), pois os elementos que permeiam a crônica são capazes de fazer com que o leitor vivencie a percepção das diferentes nuanças do humano. Há uma alusão direta e indireta na construção textual, marcando com sinais uma contundente visão de mundo. Se tomarmos alguns pressupostos da Estética da Recepção (JAUSS, 2003), veremos que há uma forte valorização do leitor como parte do processo criativo, pois possuindo o texto vazios em seu interior a serem preenchidos, o leitor é como que convidado a partilhar de sua construção e isso só se dá por meio de uma obra aberta, onde existe a possibilidade de várias interpretações; é claro, dentro dos limites impostos pelo autor. Dessa forma, quando a obra permite a presença do leitor, permite também que este utilize o texto como uma forma de prazer, de reflexão e até mesmo de aprendizado. Este leitor, por sua vez, passa a ser humanizado pelo texto ficcional, pela literatura. “A última crônica” é narrada em primeira pessoa. O narrador, que se identifica como autor da crônica, permite que o leitor conheça seus sentimentos e consiga compreender o momento vivido com o uso da metalinguagem, pois ao falar de seu processo de escrita, com poucas palavras, o leitor passa a compreender sua situação e sentir empatia pelo narrador e pelos personagens da história. Flory (1997) nos lembra que na recepção textual deve-se considerar diversos aspectos. O processo da leitura é estudado e analisado de todos os ângulos, em sua variabilidade, em seus valores intrínsecos, nas condições pessoais e históricas em que se encontram os leitores, considerando-se a produção do texto artístico, tanto uma construção do autor como uma reconstrução pelo leitor, partindo da premissa básica de que uma obra literária só existe, concreta e efetivamente, quando é atualizada pela leitura (FLORY, 1997, p.19). Em outras palavras, mesmo diante de um problema pessoal, o narrador permite ao leitor olhar à sua volta, percebendo o problema do outro e não mais o seu próprio, passando a ter um olhar diferenciado para com a sociedade que o cerca: “Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica (SABINO, 2003). Dessa forma, o cronista permite que o centro e o foco da narrativa sejam, a partir de então, a família de negros que naquele botequim entrou e não mais ele, dando respaldo, em tal caso, a um olhar que passa a ser coletivo e não só seu. Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome (SABINO, 2003). Na frase “ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos”, demonstra claramente que a sociedade discrimina os negros de forma manifesta. O espaço também corrobora para a articulação desse sentimento de humildade, pois botequim é, em geral, um ambiente modesto, frequentado por pessoas de poucas posses. O casal com a “negrinha de seus três anos” está ao fundo dele numa das últimas mesas. O narrador demonstra o sentimento de humildade daquela família que, mesmo podendo sentar-se à frente, pois legalmente tinha os mesmos direitos que qualquer outra família, opta pela discrição. É isso que vai constituindo um texto leve e exato. Esses detalhes são ainda reforçados na crônica pela mesa de mármore ao longo da parede de vidros, pois o mármore é ao mesmo tempo uma pedra que lembra ostentação por ser cara, mas que naquele momento abriga e acolhe um casal simples acompanhado da filha. Se a parede de espelhos e o mármore podem refletir a sociedade dura, cruel e até mesmo a falsidade vivida por essa sociedade hipócrita que apregoa uma família perfeita, mas não a vivencia em muitos casos, pois ignora o respeito para com o próximo, por outro lado a felicidade da criança negra com sua família cheia de vivacidade contrapõe-se a esse olhar condenatório da sociedade para com os negros ou as classes menos favorecidas. Nesse choque de representações fica para o leitor as várias leituras possíveis e estabelece-se, na última linha da parte destacada do texto, a visão do narrador que demonstra que os negros estavam enfrentando problemas, mas, ao mesmo tempo, demonstra que estavam se preparando para viver momentos diferentes e melhores, que não somente matar a fome. O leitor, a essa altura, já se sente envolvido com o contexto apresentado. O momento ali é de festa, ainda que simples, mas o futuro pode ser melhor que o presente, pois o refrigerante pode representar o moderno, a inovação, o poder, mas o bolo ainda tem uma conotação antes familiar. A festa de aniversário da família acontece da maneira mais discreta possível e os pais se sentem orgulhosos por proporcionar tal felicidade à filha: “A mulher está olhando para ela com ternura – ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo do bolo que lhe cai ao colo” (SABINO, 2003). A mãe representa nessa ocasião a protetora da filha, sonhando com um futuro melhor para ela, procurando iguala-la às demais crianças e não se prendendo tanto às raízes, pois limpa os farelos do bolo, enquanto que “o pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração” (SABINO, 2003). Note-se que o narrador faz questão de demonstrar que o pai se sente o provedor, responsável pela família e que se alegra com as conquistas já alcançadas, por isso olha ao seu redor, buscando aprovação. Há nitidamente um choque cultural entre as concepções de mundo das personagens narradas e as vivências e apelos da sociedade capitalista e consumista moderna. O olhar do leitor passa a se sensibilizar pelo representado nessa história, em especial no último trecho quando O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido – vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. (SABINO, 2003, grifos nossos) Os olhares se encontram, sendo o do pai, o do narrador e o do leitor, dizendo que o pai, negro, estava feliz por suas conquistas, mas que diante de um olhar observador titubeou, mas logo retomou as forças das suas convicções e reafirmou os seus valores, seus sonhos e suas realizações já ocorridas, o que foi apoiado pelo narrador e possivelmente pelo leitor. O olhar nesse conto demonstra a bondade do coração humano, a cumplicidade em lutar por uma causa nobre como o combate ao preconceito. Fernando Sabino faz uma crítica àquela sociedade dita perfeita, por conta da sua estrutura, mas hipócrita e vazia. “Olhar”, de Rubem Fonseca Ainda dentro dessa procura por dar conta de perspectivas críticas do olhar criador na contemporaneidade, destacando o modo de representação e o conteúdo representado de alguns escritores e considerando a participação ativa do leitor na constituição desses significados, tomamos o conto “Olhar”, de Rubem Fonseca. Rubem Fonseca, formado em Direito, foi policial durante vários anos de sua vida. Devido a isso, muitos críticos atribuem à sua narrativa – em grande parte violenta e brutalista e que toma como personagens criminosos e outros sujeitos que vivem à margem da sociedade urbana – como sendo um texto bastante “colado” ao real e, às vezes, até o acusam de ter tomado seus personagens de seu cotidiano. Muito embora realmente possamos afirmar tratar-se de um texto narrativo que traga em si um “efeito de real”, seria no mínimo inconsequente ler Fonseca somente por esse viés. Portanto, muito embora estejamos procurando apresentar as perspectivas críticas do olhar desse ficcionista que sem dúvida procura romper com certos padrões de comportamento, buscando desnudar determinados aspectos da sociedade, nossa opção será por demonstrar que esses aspectos conformam o caráter estético de sua produção e sua narrativa ganha força expressiva. É, portanto, um recurso de consecução do estético. “Olhar” é um conto que narra a história de um homem erudito que não se interessa pela comida, aprecia apenas a arte, música, teatro, etc., até que um dia passa muito mal, desmaia sozinho em casa e quando acorda tem espasmos. Depois desse episódio resolve consultar um médico. Dr. Goldblum o consulta e chega à conclusão que aquilo era devido à falta de alimentação. Então o convida para jantarem fora naquela noite, já que o médico tinha acabado de se separar e conhecia vários restaurantes da cidade. A personagem não tem como negar o convite, mas vai sem se agradar da ideia. No restaurante, não queria se servir de nenhum prato no cardápio, até que o Dr. Goldblum lhe apresenta um aquário, no qual deveria escolher uma truta viva para ser preparada. Mesmo recusando-se a fazê-lo, cedeu em olhar os peixes e não sabia que critérios usar para escolher o que comer, até que uma das trutas dirige o olhar ao seu, então ele a escolhe para ser servida. O olhar daquela truta mexe com a personagem que sente um prazer inebriante ao comê-la. No outro dia, quis repetir a façanha, mas não se recordava do nome do restaurante. Então foi a um outro que também servia trutas. Nesse novo restaurante, não existindo aquário para escolha dos clientes, resolve escolher uma truta do cardápio, mas seu sabor não era tão bom como o da truta anterior. Percebe que seu prazer está em olhar a truta antes de comê-la. Então faz uma lista dos restaurantes que contêm aquários para escolha de animais e, em cada dia, conhece um restaurante diferente e se delicia com isso, passando a comer também lagosta ou lagostim que ficava no mesmo ambiente. Certo dia, o garçom lhe oferece coelhos no lugar das trutas. Ele pergunta se poderia escolher o coelho, o que não é possível, mas resolve experimentar mesmo assim. Vai à cozinha do restaurante para ver o coelho ser temperado, mas este estava sem cabeça. Ao degusta-lo não sente prazer na ingestão. Então vai até uma loja de pequenos animais e procura pelos coelhos. Percebe que os coelhos tinham olhos evasivos, mas um se destaca pela beleza e, mesmo sendo mais caro, o leva para casa. Quando chega em casa, oferece cenouras e batatas para o animal. Depois o pega pelas orelhas e o coelho o olha candidamente e de modo espontâneo. O homem erudito mata o animal e o leva para uma banheira vazia junto com baldes e instrumentos cortantes. Ali estripa e limpa o bicho, pois não queria suja a cozinha com sua inexperiência. Com o coelho pronto para ser temperado, lava a banheira e nela toma um banho quente e relaxante. Do banheiro, vai para cozinha e prepara o coelho ensopado com cenouras e batatas. Ao som de música clássica, come o coelho. O sabor é indescritível. Depois da refeição, a personagem vai escovar os dentes e através do espelho vê a banheira. Passa então a pensar no olhar de um cabrito, que alguém lhe dissera ser uma mistura de meiguice e perversão. Pensa no olhar do ser humano e, assim, volta seus pensamentos à banheira, pois ele precisava de uma banheira maior, talvez uma jacuzzi. A retomada um tanto detalhada do conto não é à toa. Note-se que o constructo da narrativa autentica nossas reflexões, pois o conteúdo vai sendo proporcionado ao leitor em doses sucessivas de probabilidades sobre a conduta humana e estas vão se avolumando de tal modo que o “olhar” da personagem não mais lhe pertence. Cabe ao leitor desvelar os conteúdos obscuros da mente humana insinuados pelas condutas dessa personagem. Portanto, forma e conteúdo se imbricam de tal forma que o leitor é arremessado nas imagens que estão sobrepostas a partir do conhecimento ordinário dos comportamentos humanos em embate com o modo como os vocábulos eleitos induzem aos demais sentidos ali contidos. Rubem Fonseca possui decisivamente um “projeto de obra” que evoca “imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis”. Tudo isso por meio de uma linguagem “precisa” que é capaz de exprimir pormenores do imaginário humano. Em outras palavras, Rubem Fonseca escolhe os vocábulos de tal forma que essa linguagem se aproxima das “nuanças do pensamento e da imaginação” com uma configuração, com um desenho em que o não-dito ganha mais significado que o dito, o que está explicitado pelas palavras. “Olhar” apresenta essa atitude de maneira profunda, provocando no leitor uma visão nítida do olhar da maldade e do prazer no brutal. O texto causa um “efeito de estranhamento” no leitor porque expõe os mais recônditos sentimentos do ser humano. Segundo Eco (2013, p.69): O efeito de estranhamento ocorre desautomatizando-se a linguagem: a linguagem habituou-nos a representar certos fatos segundo determinadas leis de combinação, mediante fórmulas fixas. De repente um autor, para descrever-nos algo que talvez já vimos e conhecemos de longa data, emprega as palavras (ou os outros tipos de signos de que se vale) de modo diferente, e nossa primeira reação se traduz numa sensação de expatriamento, numa quase incapacidade de reconhecer o objeto, efeito esse devido à organização ambígua da mensagem em relação ao código. A partir dessa sensação de “estranheza”, procede-se a uma reconsideração da mensagem, que nos leva a olhar de modo diferente a coisa representada mas, ao mesmo tempo, como é natural, a encarar também diferentemente os meios de representação e o código a que se referiam (grifos do autor). O conto é inicia com uma reflexão, permitindo ao leitor pensar sobre o seu olhar em sociedade quando diz: “Um olhar pode mudar a vida de um homem? Não falo do olhar do poeta, que depois de contemplar uma urna grega pensou em mudar de vida. Refiro-me a transformações muito mais terríveis” (FONSECA, 2004). A introdução já prepara o leitor para prestar atenção no olhar, mas não com olhos de paixão ou devaneio, mas com olhar crítico sobre a hipocrisia do que nos cerca. O início do texto apresenta um mundo fastidioso e chato, constituinte da personagem, mostrando que sua vida não tinha nada de interessante para se tratar até o momento em que o “olhar” entra em cena e, a partir de então, a vida passa a ter sentido, emoção. A personagem que estava sem inspiração para escrever, não come e por inanição tem uma vertigem, uma visão. O narrador procura exaltar sua obra dizendo ser ela um clássico, por manter a atenção ininterrupta dos leitores. Sendo assim, ele convida o leitor a fazer parte da sua história, a caminhar pela loucura da mente humana. Segundo Compagnon (2010, p.86), As grandes obras são inesgotáveis: cada geração as compreende à sua maneira; isso quer dizer que os leitores nelas encontram algum esclarecimento sobre um aspecto de suas experiências. Mas se uma obra é inesgotável, isso não quer dizer que ela não tenha um sentido original, nem que a intenção do autor não seja o critério deste sentido original. O que é inesgotável é sua significação, sua pertinência fora do contexto de seu surgimento. A narrativa apresenta uma só célula dramática, um só conflito, uma só ação, com o narrador personagem que mais uma vez convida o leitor a se aproximar dos seus sentimentos, talvez tentando fazer com que o outro compreenda os seus sentimentos mais sórdidos e o acompanhe nessa loucura que é viver. O primeiro olhar se dá por meio de um peixe, uma truta, um animal pequeno e aparentemente insignificante, sendo uma presa fácil e pronta para ser atacada que, pela narrativa, estava até se insinuando para a personagem quando ele relata que “subitamente percebi que uma das trutas me olhava. Nadava de maneira mais elegante do que as outras e possuía um olhar meigo e inteligente. O olhar da truta me deixou encantado” (FONSECA, 2004, grifos nossos). A narrativa deixa claro ao leitor a apreciação em êxtase da truta. Não é qualquer truta, ela é a que nada mais elegantemente e que possui características que a humanizam como a meiguice e a inteligência. É isso que o atrai: “Comer aquela truta, devo admitir, foi uma experiência mais do que agradável. Eu não esperava sentir um prazer e uma alegria tão grandes, apenas por ingerir um mísero pedaço de carne de peixe” (FONSECA, 2004). Há, portanto, um imenso espaço para o leitor e suas presunções, o que é intensificado no momento seguinte quando come a truta sem vê-la viva. Sua decepção é total. Desapontado pedi truta aux amandes, como da outra vez. Minha decepção foi imensa. O peixe não era igual ao outro que eu degustara com tanta emoção. Não tinha cabeça, nem olhos. Eu lhe dediquei a mesma atenção meticulosa, separando a carne das espinhas e da pele, mas, na hora de comer, o sabor não era parecido com o da carne que provara anteriormente. Era uma carne insípida, sem caráter ou espírito, insossa, sem frescura, enfadonha, sem elã, com um sabor de coisa diluída – um calafrio varou meu corpo – de coisa morta. (FONSECA, 2004) Assim, o “olhar aqui não é apenas uma luz que conhece, mas uma força que penetra no ser olhado, ferindo-o, tolhendo a sua liberdade, esvaziando-o, dessangrando-o, tangendo-o para o nada” (BOSI, 2013, p. 80). O olhar é a interação profunda com o outro, construindo a subjetividade pelo olhar do outro. A partir do desejo despertado, a personagem corre por todos os restaurantes que oferece peixes no aquário, até o momento que lhe é apresentado a possibilidade de novas aventuras, a posse e degustação de bichos maiores. Opta pelo coelho. Esse animal é conhecido popularmente como símbolo da fertilidade, e de acordo com Chevalier e Gheerbrant (2012), o coelho está ligado à velha divindade Terra-Mãe, ao simbolismo das águas fecundantes e regeneradoras, ao da vegetação, ao da renovação perpétua da vida sob todas as suas formas; sendo assim, a personagem também parece estar se renovando, se aperfeiçoando para demonstrar sua suposta superioridade e isso é visto e repetido no ritual humano diário de subjugação da sua presa. Do mesmo modo, há um choque de representações, pois no caso do conto, em vez de fertilidade e exaltação da beleza do animal, o coelho é morto pelo próprio protagonista que não sente qualquer desconforto com a situação. Ao final do conto, a descrição da atitude da personagem novamente causa estranhamento pelas imagens que suscita. Contemplei, através do espelho, pensativo, a banheira. Quem fora mesmo que me dissera que os cabritos tinham um olhar ao mesmo tempo meigo e perverso, uma mistura de pureza e devassidão? E o olhar dos seres humanos? Hum... Aquela banheira era pequena. (FONSECA, 2004) Primeiramente, ao despir-se e levar o coelho para a sua banheira, evidencia a proximidade do horror e do prazer. Em seguida, o narrador encontra no espelho o seu próprio olhar. Nesse momento o narrador parece querer encontrar também o olhar do leitor e o coloca em alerta, pois diante do silêncio dá a entender que esse leitor também aumentaria seu prazer ao cometer o mesmo ato com um ser humano. Em busca de síntese... Se como se diz correntemente - a partir de uma frase supostamente de Leonardo da Vinci - que “os olhos são a janela da alma e o espelho do mundo”, em “A última crônica”, de Fernando Sabino, e “Olhar”, de Rubem Fonseca, o leitor pode se encontrar e se compreender, como também dar evasão aos seus mais recônditos e estranhos desejos. Conforme assinalamos a partir de Candido (1972), a literatura não tem uma função precípua, mas pode nos humanizar em sentido profundo porque proporciona ao homem a oportunidade de rever a sua condição enquanto ser humano e, diante dela, pode refletir sobre sua existência e alterar seu destino, lutando por seus ideais, seus sonhos ou desejos e, dessa maneira, pode compreender o mundo a sua volta e, assim, denunciar, negar, aceitar, enfim, pode ir além do que foi até aquele momento. Ainda para Candido (2011, p. 182), humanização é o “processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, [...]. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”. A literatura não é estática, trazendo somente conceitos que vêm “de” ou “ao” encontro com determinada ideologia, “ela não é uma experiência inofensiva, mas uma aventura que pode causar problemas psíquicos e morais” (CANDIDO, 2011, p. 178). Isso significa que ela tem o papel formador de personalidade, tem a capacidade de incitar opiniões, de fazer pensar, não só segundo as convenções, mas diante da própria realidade. A arte literária é espetáculo de uma poderosa “janela” da vida, pois através dela pode-se enxergar diferentes mundos. O texto ficcional desenvolve no leitor a capacidade imaginativa e essa penetra em seu ser de modo a fazer parte da sua vida, a influenciar nos seus pensamentos e ações, pois já faz parte do seu inconsciente e o olhar na literatura faz com que o leitor consiga se enxergar dentro do mundo, de maneira que passa a refletir sobre aquilo que lhe é importante vivenciar. Por meio dos textos analisados, é possível nos aproximarmos e termos um vislumbre do olhar desses ficcionistas, mas não só deles. Como pudemos verificar, para cada situação existe um olhar diferente, o olhar da bondade, o olhar da sedução, o olhar do prazer, o olhar da maldade e muitos outros, mas o verdadeiro olhar só se concretiza em cada leitor, nas suas relações com o seu próprio olhar transformador. Bibliografia ARMOUNT, Jacques. A imagem. Campinas/São Paulo: Papirus, 1993. BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2013. CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio: Trad.: Ivo Cardoso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. São Paulo: Ciência e Cultura, 1972. ______. Literatura e sociedade. Estudos de teoria e história literária. 12. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alin. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva; et al. 26.ed. 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Título do Evento
4º COLÓQUIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS LITERÁRIOS (CIEL) E 11º SEMINÁRIO DE DISSERTAÇÕES E TESES DA UNEMAT - PPGEL/UNEMAT
Cidade do Evento
Tangará da Serra
Título dos Anais do Evento
Anais do Colóquio Internacional de Estudos Literários - Universidade do Estado de Mato Grosso
Nome da Editora
Even3
Meio de Divulgação
Meio Digital

Como citar

LENZ, Liliane; PINTO, Aroldo José Abreu. A REPRESENTAÇÃO DO OLHAR EM DOIS CONTOS CONTEMPORÂNEOS1.. In: Anais Do Colóquio Internacional De Estudos Literários - Universidade Do Estado De Mato Grosso. Anais...Cáceres(MT) UNEMAT, 2020. Disponível em: https//www.even3.com.br/anais/ivciel/306165-A-REPRESENTACAO-DO-OLHAR-EM-DOIS-CONTOS-CONTEMPORANEOS1. Acesso em: 29/05/2025

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